Vestígio
“Balanço as pernas inquieto. Meus olhos no relógio velho que pende precariamente na parede. A mesa a minha frente exala o cheiro de álcool gel. A moça acabou de limpar, vendo claramente que não havia ninguém sentado ali.
A cada vez que a porta se abre e o som suave dos sinos retine no ambiente, me sobressalto e fixo meus olhos a frente, mas até agora, nenhum cliente a entrar ali usava roupas coloridas ou caminhava com passos graciosos.
Vinte minutos depois, quando eu estava considerando seriamente ir embora, ela entra apressada. Sorrio.
Lembro-me de ter colocado no papel a mesa onde costumava me sentar quando vinha aqui, mas como em um passe de mágica, ela parece me ver, e se encaminha confiante até o nosso lugar.
– Não sei se um lugar público é exatamente ideal para conversarmos – ela diz olhando em volta. O lugar não estava cheio, mas haviam algumas pessoas apinhadas no balcão um pouco afastado dali.
– É que esse lugar… – eu começo.
– É o lugar que mais gosta de frequentar? – ela pergunta encostando-se na cadeira azul marinho parecendo repentinamente relaxada, como se perguntar algo sobre mim nos deixasse em território seguro.
– Não, o lugar que mais gosto de ir é a biblioteca – eu digo e ela levanta as sobrancelhas surpresa – Esse é o lugar em que eu costumava vir antes da… antes de tudo acontecer, há muitas lembranças aqui e é por isso que você está me vendo – eu explico colocando as mãos sob a mesa gelada.
Ela semicerra os olhos – Por incrível que pareça algo me dizia que eu iria entrar por aquela porta e te enxergar – confidencia.
– Você tem uma boa intuição – sorrio.
– Talvez… – ela sussurra – Sabe, eu tenho algo para te contar – ela olha pela janela subitamente nervosa, como se revelar algo sobre si não fosse mais tão confortável.
– O que? – eu me inclino para frente e coloco o queixo entre as mãos.
– Eu sou bailarina – ela começa e eu apenas assinto silenciosamente – E na primeira vez que fui até a biblioteca queria muito ler aquele livro, eu já estava procurando por ele há meses até que uma amiga me falou daquele lugar – ela suspira – Mas em todas as outras vezes… Eu não tinha nenhuma razão para ir até lá, eu nem mesmo sabia o que ler. Mas algo me levava até lá.
– O que? – pergunto fascinado.
– Não sei – ela balança a cabeça – Eu só… Desde criança, eu tenho isso de “coisas que foram feitas pra acontecer”. Eu sei que é bobagem, mas é mais fácil pra mim acreditar que algumas coisas simplesmente são pra ser, sabe? – ela me sonda com os olhos – Alguém sempre me chamava para tomar café lá perto, mudavam o horário do meu ensaio, eu até desci na estação próxima um dia porque estava distraída. Eu sei que é loucura, mas… Bem, o que dessa história não é loucura, não é mesmo? – ela sorri.
– Eu teria dificuldades tentando encontrar algo – admito balançando a cabeça, um leve sorriso nos lábios.
– Então… E ai todas aquelas coisas começaram a acontecer, o café, o livro, a sensação de que alguém sempre estava por perto – ela volta a encarar a janela ao nosso lado – E minha curiosidade jamais me deixaria sair de lá sem descobrir o que estava acontecendo.
– Eu sei – digo envergonhado.
– Sabe? – ela inclina sua cabeça para o lado e me estuda com os olhos.
– Dá pra perceber que você é o tipo de pessoa que não desiste até desvendar um mistério – me explico timidamente.
Ela suspira, parece pensar um pouco e então diz – Quero te mostrar um lugar – seus olhos negros brilham contra o sol da manhã e ela se levanta, me estendendo a mão.
Nossa caminhada é apressada, como se tivéssemos pouco tempo, o que provavelmente é verdade. Ela anda um pouco a minha frente, e o vento sopra o seu perfume em minha direção, fecho os olhos por alguns instantes, e é como se tudo estivesse acontecendo novamente.
– No que está pensando? – ela pergunta diminuindo um pouco o passo.
– Em como a vida é surpreendente – eu coloco as mãos geladas e sujas de tintas nos bolsos e abro os olhos.
– Ela é? – suas íris negras parecem vasculhar a minha alma.
– Bastante – encaro meus pés e desvio meus olhos do seu olhar intenso – Pelo menos nesses últimos dias – confesso baixinho.
Depois de alguns minutos andando, ela para suavemente e aponta – Aqui, espera um pouco.
Com passos rápidos, vai até um portão vermelho descascado e habilidosamente remexe suas correntes enferrujadas. Uma vez que ele se abre estrondosamente, entra e faz sinal para que eu me junte a ela. O local é inicialmente escuro, e um corredor estreito se estende a frente, caminhamos por ele ouvindo apenas nossos ruidosos passos, até que mais uma porta preta é aberta, e de repente, nos encontramos em um lugar amplo e iluminado. É um palco e estamos em uma de suas entradas laterais.
A madeira é lustrada. As luzes amareladas inundam o local com maestria. As cortinas vermelhas balançam suavemente. As centenas de cadeiras pretas nos encaram vazias. É de tirar o fôlego.
– É onde ensaiamos, mas o pessoal não vai chegar por pelo menos uma hora – ela caminha graciosamente largando sua mochila sobre o piso plano e sentando-se com as pernas em borboleta.
Cuidadosamente eu me sento ao seu lado e olho ao redor.
– É incrível – minha voz é sonhadora e parece se perder em tanto espaço.
– E você nunca se acostuma – ela afirma olhando em volta.
– Não há razão para isso – eu dou de ombros – O costume faz a gente deixar de perceber a grandeza das coisas.
Ela me encara em silêncio como se tentasse me desvendar. Eu sustento seu olhar.
Segundos mais tarde, a bela garota a minha frente levanta-se e caminha calmamente pelo palco.
– Quero saber mais sobre você – ela afirma – E sobre toda essa loucura rolando.
– Eu vou te contar tudo – asseguro – Com uma condição.
– Qual? – ela para de andar e me lança um olhar curioso e desafiador.
– A cada resposta que receber, terá que dar outra em troca – eu bato os dedos nervosamente contra a madeira.
– Tudo bem – ela diz e volta a caminhar – Vamos começar pelo começo, qual é o seu nome?
– Josh, e o seu? – eu prendo a respiração.
– Alicia – ela responde rapidamente e solto um suspiro que parecia estar preso por toda a vida. Então é ela, é realmente ela.”
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